quarta-feira, 24 de agosto de 2011

REMEMORAÇÕES DE UM FILHO DE BRIGADIANO


REMEMORAÇÕES - PAULO SANT’ANA - ZERO HORA, 20 de agosto de 2011 | N° 16798


Estava recordando anteontem as várias formas que usei para arranjar dinheiro quando guri.

Vendia garrafas. Cruzava um ferro-velho de carroça pela minha casa, e eu passava nos cobres as garrafas que meu pai juntava.

Todo o dinheirinho que conseguia tinha a finalidade de comprar uma entrada para a matinê de domingo, no Cine Brasil, Avenida Bento Gonçalves, ou no Cine Miramar, na Avenida Aparício Borges.

E o resto era para comer doces. Quando sobrava algum, tinha eu acesso à maior delícia do mundo: uma lata de leite condensado marca Moça.

E abria a lata furando-a duas vezes, uma para chupar o leite, a outra para entrar o ar e manter o fluxo.

Outra maneira que eu arranjava para buscar trocados era a venda de ossos. Pegava um carrinho com pneus e subia o Morro da Polícia por onde hoje é uma rua muito populosa, a Volta da Cobra, que naquele tempo era uma estrada silvestre de indizível beleza natural.

O nome da estrada se devia a que, em determinada parte de seu trajeto, o que deve acontecer ainda hoje, nas imediações da Vila São José (Coreia), o percurso virava um verdadeiro zigue-zague, serpenteando as grandes árvores cheias de cipós.

Uma selva luxuriante, dentro de Porto Alegre.

Pois eu ia até lá para procurar esqueletos de mamíferos mortos, juntava os ossos e os vendia ao ferro-velho. No dia em que isso acontecia, eu mergulhava num festim de guloseimas.

Mas, para quem é ou foi brigadiano antigo, eu vou recordar um estratagema que os soldados usavam para driblar suas dificuldades financeiras: era o que eles chamavam de “touro”.

Consistia em adquirirem a crédito na “cantina” gêneros de toda espécie e revendê-los à vista no comércio estabelecido de armazéns, evidentemente que a preço de custoso deságio.

Vendo aquilo, descobri uma forma de arrumar dinheiro, eram os jeitos que eu, garotinho imberbe, bolava para arrumar recursos.

Comprava na conta de meu pai no quartel e revendia. Quando, no fim do mês, na data do pagamento do soldo, meu pai descobria, então eu sofria dolorosas surras de cinta dele.

Quando uma criança não ganha mesada, tem de ter muita imaginação para arrumar dinheiro.

Nunca me esqueço do dia em que fiz um “touro” para poder assistir ao badalado filme colorido Sansão e Dalila, com Victor Mature e Hedy Lamarr. Outra vez, foi para assistir ao épico Gunga Din, que ficou cravado para sempre em minha memória.

Assistir aos circos que vez por outra armavam suas lonas no Partenon e na Vila Santa Maria, no entanto, nunca me custou nada: eu tinha uma técnica muito esperta para “furar” os circos, sempre por baixo da lona estendida, sempre depois de já ter começado o espetáculo.

Dias de glória e de felicidade arteiras os da minha infância. Dias de folguedos, de brincadeiras, de aventuras.

Nem de leve me assaltava o espírito o medo do futuro, de como iria eu resolver o meu sustento, o que só agora sei o quanto foi sacrificado.

Mas é que a gente passa pela infância como se fosse por um sonho, como se ela não tivesse existido, tanta era a inocência e a pureza das nossas intenções.

COMENTÁRIO DO BENGOCHEA - Muito bom este texto. Como sou filho de brigadiano, lembra a minha infância, os bons momentos e as dificuldades. Porém peço escusas ao autor e aos tricolores pela ilustração com a camiseta do meu time - o Internacional de Porto Alegre, o Campeão de Tudo. É por invejar a torcida do tricolor em ter na sua torcida uma pessoa deste quilate - sábio, lutador e visionário.

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