domingo, 21 de agosto de 2011

O TREM DA LEGALIDADE


LEGALIDADE - DIONE KUHN E NILSON MARIANO, ZERO HORA 21/08/2011

Sete veteranos que combateram no Trem da Legalidade se perfilam diante da estação ferroviária de Santiago, 50 anos depois, para relembrar uma façanha. Peito estufado, uma centelha no olhar pela missão cumprida, orgulham-se de ter pego em armas para defender a posse de João Goulart na Presidência da República. Mas eles também se reúnem junto aos trilhos desgastados pelo tempo, sob a inclemência do inverno gaúcho, para revelar uma verdade que ficou adormecida desde 1961: o comboio em que viajavam não chegou ao destino. Em uma série de reportagens que se inicia neste domingo e vai até quinta-feira, ZH fará revelações sobre o Movimento da Legalidade e revisará versões consagradas como fatos.

O Trem da Legalidade é um dos episódios que compõem a campanha liderada pelo governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, para garantir que João Goulart assumisse a Presidência a partir da renúncia de Jânio Quadros, ocorrida em 25 de agosto de 1961. No levante para fazer prevalecer a Constituição e derrubar o veto da cúpula militar a Goulart – o vice-presidente legitimamente eleito –, Brizola mobilizou a população, uma cadeia de rádios e tropas armadas. Evitou um golpe de Estado, o qual se consumaria três anos depois.

Parte dos soldados que ajudaram a triunfar a última insurreição gaúcha embarcou no Trem da Legalidade. Era o comboio oficial, patrocinado pelo Estado, e partiu de Santiago em 2 de setembro de 1961. Brizola sustentava que a composição fora até Ourinhos (SP), arrebanhando multidões numa jornada épica de 2,4 mil quilômetros – ida e volta. Isso foi repetido em livros, discursos e sites. Entrou nos anais do Congresso e na história como verdade.

Mas não foi bem assim que aconteceu. O mérito dos pracinhas do Trem da Legalidade é perpétuo: foram bravos e patriotas. No entanto, ele não concluiu o traçado previsto, sequer entrou na vizinha Santa Catarina. Ficou em Marcelino Ramos, o último ramal ferroviário rio-grandense, de onde retornou quando a situação política se normalizou. Se outra locomotiva seguiu adiante, foi de forma isolada, não teve relevância.

É certo que outras forças brizolistas penetraram em território catarinense, mas por via rodoviária, e chegaram a Lages, Araranguá e Criciúma. O Trem da Legalidade, não. Os próprios tripulantes esclarecem que a ordem era ir até Ourinhos (SP) ou, no mínimo, a Ponta Grossa (PR), mas a expedição terminou às margens do Rio Uruguai, a 696 quilômetros da gare de Santiago.

– Não fomos adiante – garante o ex-cabo Alceu Nicola, hoje com 70 anos e empresário.

ZH refez a rota do Trem da Legalidade, de Santiago a Ourinhos. O que os combatentes gaúchos informam é confirmado por ex-ferroviários, ex-prefeitos, políticos, jornalistas e moradores das cidades que abrigavam estações ferroviárias. Consultados, historiadores e professores universitários também não viram a composição sair do Rio Grande do Sul.

O comboio foi iniciativa do comandante da 1ª Divisão de Cavalaria do Exército, general Oromar Osório, de Santiago. O governador Brizola disponibilizou 11 trens – cada um dotado de locomotiva e vagões. Transportavam soldados (os testemunhos convergem para cerca de 400 homens), armas, metralhadoras e baterias antiaéreas. O objetivo era dominar a linha férrea Rio Grande do Sul-São Paulo, então a principal via da região.

A estratégia do Trem era dupla: proteger e avançar. Temia-se que o Estado fosse invadido por tropas federais que foram enviadas para Santa Catarina. Um comboio antilegalidade, mais poderoso que o gaúcho, procedia de São Paulo com “a tropa de elite do nosso Exército”, conforme divulgou A Gazeta, de Florianópolis.

Os dois comboios não se enfrentaram. Se tivesse rumado até Ourinhos, como o planejado, o Trem da Legalidade deveria atrair catarinenses, paranaenses e paulistas à causa. Veículo de guerra e de propaganda, também espalhava um simbolismo pelo apito das suas locomotivas: repetir a Revolução de 1930, quando Getúlio Vargas foi de trem até Itararé (SP) para depor o presidente Washington Luís. Ourinhos e Itararé são próximas.

Brizola comparava a incursão ao sul do país à manobra do general norte-americano George Patton, que durante a II Guerra Mundial varreu a Europa libertando nações dominadas por Hitler. É um exagero que se atribui ao líder trabalhista, morto em 2004, aos 82 anos. Os soldados do Trem da Legalidade não dispararam um só tiro. No entanto, pelo menos três morreram, devido a acidentes. Uma das vítimas foi um cozinheiro, cujo fogão que manejava explodiu no acampamento de Marcelino Ramos.

Ficamos em Marcelinho Ramos

Os refrões do Hino Nacional insuflavam coragem e patriotismo quando o cabo do Grupo de Artilharia a Cavalo (GAC) Alceu Pedro Nicola embarcou no Trem da Legalidade naquele setembro de 1961. Ao se despedir do povo na estação ferroviária de Santiago, acreditava que iria para o front.

O mosquetão e a pistola azeitados, Nicola, 20 anos, tentava disfarçar a emoção com a seriedade que o momento impunha. Sobrava destemor, mas admite que uma pontinha de receio lhe corroía em relação ao futuro. As ordens do comandante da 1ª Divisão de Cavalaria (DC), general Oromar Osório, eram claras: a tropa deveria marchar até Ourinhos pronta para tudo. A preocupação do pai, Atílio, e a aflição chorosa da mãe, dona Agrícola, ampliavam a gravidade.

– Era como se fôssemos para a guerra. Mas ficamos em Marcelino Ramos – lembra ele.

A mesma convicção bélica embalava os demais combatentes. O cabo Alfeu Corrêa, 25 anos, estava certo de que teria de puxar o gatilho contra outros brasileiros. Acomodado em um vagão de carga, martelava-lhe a determinação recebida:

– Só nos disseram que era para lutar contra o I Exército.

O sargento João Sady Brasil Colpo, à época com 29 anos, recorda os mimos que o Trem da Legalidade recebia nas estações pelo Rio Grande do Sul. Estudantes se aglomeravam, famílias ofereciam doces, roupas e cigarros – que todo soldado gostava de pitar –, mocinhas acenavam lenços coloridos.

– A recepção foi extraordinária, havia gente que chorava de emoção – conta João Sady.

O soldado Jorge Damian tinha apenas 18 anos, mas não se assustou. O cabo Alberto Guedes, 24 anos, era o armeiro: cuidava dos canhões, da bateria antiaérea e de 140 mosquetões. O sargento Wilmar Donini, 35 anos, coordenava as comunicações e gravou a advertência do comandante do trem, major Nilton Della Nina Quites:

– Guerra é guerra, velho!

O comboio não seguiu em bloco. Um dos trens ficou no 4º Regimento de Cavalaria, em Passo Fundo. Na viagem, o sargento Constantino Zaboetzki, 23 anos, sentiu falta do rádio Invictus pelo qual acompanhava os discursos de Brizola na Cadeia da Legalidade. Na locomotiva da ponta, um sargento podia ser visto por populares empunhando uma metralhadora de tripé.

Havia pelo menos um civil na tropa. Nilton da Silva Soares servia lanches e bebidas no Café Ponche Verde, em Santiago, quando apareceu um cliente apressado. Estranhando a ansiedade do freguês, um pracinha que antes se demorava nas conversas de balcão, perguntou o motivo da urgência.

– Mas tu não sabes?! Estourou uma guerra!

O garçom, então com 23 anos, não titubeou. Largou a bandeja com os copos, secou as mãos no avental, pegou o revólver em casa e se apresentou. O dono do Ponche Verde tentou dissuadi-lo. Em vão. Os pais rogaram que ficasse. Nada o demoveu.

– Seria uma covardia deixar os amigos brigarem solitos – diz.

O garçom viu dois desertores saltarem do trem, com medo da batalha. Ele permaneceu firme, até achou divertida a jornada. Um dos raros contratempos ocorreu em Santa Maria, quando a locomotiva resfolgou numa subida, pateou como um boi sem forças. A estratégia de jogar areia nos trilhos, para aumentar a aderência, garantiu a retomada da viagem.

– Sou o único voluntário civil – orgulha-se Nilton.

Antes de o Trem da Legalidade partir, a 1ª DC já enviava soldados ao Norte do Estado. Em 31 de agosto de 1961, aos 35 anos, o sargento Joaquim João Dória de Lemos embarcou de ônibus com sua mochila de combate. Ficou aquartelado em Passo Fundo, aguardando instruções, e de lá voltou. Como todos, não deu um tiro.

Passo Fundo recepcionou com foguetório

Nas estações por onde apitou, no trecho gaúcho entre Santiago e Marcelino Ramos, o Trem da Legalidade arrastou multidões e despejou a fumaça do civismo sobre as cidades. Em Passo Fundo, moradores esperaram os soldados com foguetório e bandinha, além de farta distribuição de chocolate e cigarros das marcas Elmo, Belmont.

O ferroviário Valentim Jesus Viana de Oliveira estava de folga, mas compareceu à estação passo-fundense para recepcionar os legalistas e ajudar no êxito da excursão. Nenhuma composição chegava, passava ou saía sem a autorização dos ferroviários. Eles estavam alertas sobretudo contra eventuais sabotadores.

– Mas tudo correu bem, foi uma coisa linda – diz Valentim, hoje com 82 anos.

Passo Fundo não apenas recepcionou, também engrossou o Trem da Legalidade. Valentim lembra que a Locomotiva 800, conduzida pelo maquinista Astério Pereira de Oliveira, arrancou chispas dos trilhos puxando vagões com militares. Foguista, Valentim cogitou ir junto, mas Astério já tinha quem abastecesse a fornalha com lenha e carvão.

Ferroviários como Valentim dedicaram-se à causa da Legalidade e, em 1964, se opuseram ao golpe de Estado que depôs João Goulart. Acautelavam-se especialmente contra os inimigos ocultos, os “bigorrilhos” do PTB, que usavam a máquina do partido para abocanhar mamatas. Foram perseguidos pela ditadura militar. O filho de Valentim, Jorge Antônio, passou em todas as etapas no concurso para maquinista da RFFSA, mas foi reprovado no quesito “sangue”: tinha o DNA de um conspirador.

– A luta que fizemos foi autêntica. Cumpri meus deveres para com os companheiros – conforta-se Valentim, que não abdicou de seus ideais.

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