TRAGÉDIA DE SANTA MARIA: O DOMINGO SEM FIM
Quando o telefone tocou, no meio da madrugada, o coordenador Regional da Defesa Civil, o tenente-coronel da Brigada Militar Adilomar Silva, cambaleou até o aparelho. Atendeu com a voz pastosa de sono. Do outro lado, na sala de operações do 1º Regimento de Polícia Montada, falava uma soldado.
– O senhor tem lona preta disponível, coronel? – questionou.
Intrigado com a necessidade repentina do material, geralmente usado para recompor telhados destruídos por intempéries, Silva perguntou qual a razão do pedido, feito às 3h45min daquele domingo, 27 de janeiro.
– Para cobrir corpos – respondeu a soldado.
O oficial explicou que toda a lona armazenada fora remetida a municípios próximos em razão das pesadas chuvas de granizo de setembro e outubro. Sugeriu que a brigadiana ligasse para a coordenadoria municipal da Defesa Civil. A soldado agradeceu e desligou. O tenente-coronel sentou-se na cama e, em seguida, sussurrou para si próprio:
– Como assim, cobrir corpos?
Telefonou de volta e indagou o que estava acontecendo. Ouviu sobre o incêndio que já deixara pelo menos 20 mortos. Intuiu que a dimensão do desastre exigiria o envolvimento da Defesa Civil, responsável por facilitar a coordenação entre diferentes órgãos em casos de emergência. Tomou um banho, vestiu o uniforme e partiu para dar início à dura missão de organizar o transporte, armazenamento, identificação e liberação das vítimas.
Por volta das 4h, quando o oficial terminava de se aprontar, o empresário Luís Gustavo Riet, 34 anos, ainda entrava e saía ofegante da boate carregando gente para fora do inferno de chamas e gases tóxicos. Riet estava na Kiss quando o incêndio começou e conseguiu escapar da fumaça venenosa. Em vez de ir embora, resolveu voltar e salvar pessoas.
– Encontrei um segurança chorando porque a mulher dele ainda estava lá dentro – conta.
O empresário tentou chegar até ela, mas achou o caminho bloqueado por uma pilha de corpos. Retornou puxando uma pessoa e, quando tentava entrar novamente, acabou impedido por um bombeiro, por razões de segurança. Olhou em volta e empunhou uma marreta da corporação. Com ela, começou a quebrar a fachada do estabelecimento para criar um novo acesso. Em segundos, outros jovens agarraram picaretas, machados e barras de ferro com o mesmo objetivo e compuseram uma das imagens mais emblemáticas da madrugada trágica. Um rombo se abriu na parede, mas, em vez de sobreviventes, por ali só saíram rolos de fumaça preta.
– Não deu para tirar ninguém – lamenta Riet, que ficaria cinco dias internado devido à aspiração dos gases.
Centro Desportivo Municipal vira epicentro da dor gaúcha
Quando o coordenador da Defesa Civil chegou ao local, antes das 4h30min, a marreta de Riet já tinha sido abandonada. Não havia mais esperança de resgatar sobreviventes, e os bombeiros faziam o rescaldo do incêndio no interior ainda esfumaçado da boate.
Adilomar em seguida entrou na Kiss e, pelo que pôde vislumbrar em meio à escuridão, achou que havia no mínimo mais 30 mortos no local, além dos 20 já retirados:
– Foi o momento mais chocante de todo o dia – avalia o tenente-coronel.
O novo desafio era organizar o cenário caótico e fazer o “manejo dos mortos”, no jargão de Defesa Civil. Adilomar e representantes da Brigada, prefeitura e Polícia Civil fizeram, diante dos escombros fumegantes da Kiss, a primeira reunião do que viria a se transformar no gabinete de gestão de crise em Santa Maria.
Uma das primeiras e mais importantes decisões a serem tomadas era definir o local para onde seriam removidos os corpos, a fim de serem identificados e entregues às famílias. Amplo, com boa infraestrutura e fácil acesso, o Centro Desportivo Municipal (CDM) se transformaria no epicentro da dor no Estado.
Para dar conta da catástrofe, o tenente-coronel de 43 anos, há 26 na Brigada, avaliou que seria necessário envolver mais órgãos oficiais. Telefonou para o chefe da Casa Militar, coronel Oscar Luiz Moiano, para pedir a liberação de aeronaves para transporte de vítimas, peritos para identificação dos mortos, apoio das Forças Armadas e reforço no efetivo da Defesa Civil.
Ainda pela manhã, servidores de órgãos e instituições como Brigada Militar, Instituto-geral de Perícias (IGP), prefeitura, secretarias estaduais, Exército, Aeronáutica, Corpo de Bombeiros, Cruz Vermelha, Serviço de Atendimento Móvel de Urgência e polícias Civil e Rodoviária Federal se uniram a cerca de 500 voluntários. O efetivo passou a ser coordenado pelo gabinete de gestão, no CDM, onde Adilomar se instalou.
Às 7h30min, um caminhão-baú da BM começou a buscar as vítimas e a deixá-las em um dos galpões do complexo. Ainda pela manhã, 234 corpos começaram a ser identificados. Quem não estava com a carteira de identidade tinha as impressões digitais colhidas e enviadas via internet para o IGP, na Capital, onde eram comparadas com um banco de dados.
– Nosso principal medo era que esse trabalho durasse mais de 24 horas. Por isso, já havíamos deixado frigoríficos da região de sobreaviso – revela o oficial.
Maratona fúnebre exigiu organização e agilidade
Com a chegada massiva de parentes em busca de informações, o tenente-coronel procurou orientar os brigadianos que faziam o policiamento da área: tinham de ser firmes para manter a ordem, mas respeitosos.
– Vi colegas disfarçando as lágrimas. Ninguém ficou totalmente alheio – conta.
À tarde, o CDM fervilhava com policiais, peritos, familiares e amigos de vítimas, jornalistas. Por trás da aparente confusão, havia um sistema: os corpos alinhados no primeiro galpão, uma vez identificados, passavam para um anexo. Lá, recebiam o registro do óbito. Então eram leva dos a uma terceira ala, onde eram entregues às funerárias e, de lá, liberados para os velórios, que começaram depois das 16h.
Em meio à maratona fúnebre, Adilomar e os demais integrantes do gabinete de crise faziam reuniões de hora em hora. No fim da tarde, o tenente-coronel deu-se conta de outro desafio: em um dia normal, Santa Maria realiza meia dúzia de enterros. Como dar conta de mais de uma centena que deveriam ocorrer o dia seguinte? Uma força-tarefa formada por Brigada Militar e Exército rumou, então, para os principais cemitérios da cidade, para abrir covas e gavetas para o dia seguinte.
O grande receio do oficial fora evitado: antes da meia-noite, os últimos corpos estavam identificados. A última vítima, acolhida em um caminhão-frigorífico do Exército, seria entregue aos familiares apenas na tarde de segunda-feira, porque seus parentes vinham de Mato Grosso do Sul.
Quando se completaram as 24 horas cruciais após o incêndio, a parte mais sensível do trabalho estava concluída, e Adilomar poderia ir para casa terminar a noite de sono interrompida na véspera. Em vez disso, tomou um café e continuou no CDM. Não estava com espírito para ir para casa, muito menos dormir.
O empresário Luís Gustavo Riet, que empunhou a marreta diante da Kiss, até hoje não consegue ter uma noite de sono:
– Tomo remédios, mas não durmo direito.
O gabinete de crise ainda funciona no CDM, e Adilomar segue trabalhando no auxílio a familiares de vítimas. Para personagens como o tenente-coronel, a noite de 27 de janeiro, o domingo cruel, ainda não acabou.
MARCELO GONZATTO
Quando o telefone tocou, no meio da madrugada, o coordenador Regional da Defesa Civil, o tenente-coronel da Brigada Militar Adilomar Silva, cambaleou até o aparelho. Atendeu com a voz pastosa de sono. Do outro lado, na sala de operações do 1º Regimento de Polícia Montada, falava uma soldado.
– O senhor tem lona preta disponível, coronel? – questionou.
Intrigado com a necessidade repentina do material, geralmente usado para recompor telhados destruídos por intempéries, Silva perguntou qual a razão do pedido, feito às 3h45min daquele domingo, 27 de janeiro.
– Para cobrir corpos – respondeu a soldado.
O oficial explicou que toda a lona armazenada fora remetida a municípios próximos em razão das pesadas chuvas de granizo de setembro e outubro. Sugeriu que a brigadiana ligasse para a coordenadoria municipal da Defesa Civil. A soldado agradeceu e desligou. O tenente-coronel sentou-se na cama e, em seguida, sussurrou para si próprio:
– Como assim, cobrir corpos?
Telefonou de volta e indagou o que estava acontecendo. Ouviu sobre o incêndio que já deixara pelo menos 20 mortos. Intuiu que a dimensão do desastre exigiria o envolvimento da Defesa Civil, responsável por facilitar a coordenação entre diferentes órgãos em casos de emergência. Tomou um banho, vestiu o uniforme e partiu para dar início à dura missão de organizar o transporte, armazenamento, identificação e liberação das vítimas.
Por volta das 4h, quando o oficial terminava de se aprontar, o empresário Luís Gustavo Riet, 34 anos, ainda entrava e saía ofegante da boate carregando gente para fora do inferno de chamas e gases tóxicos. Riet estava na Kiss quando o incêndio começou e conseguiu escapar da fumaça venenosa. Em vez de ir embora, resolveu voltar e salvar pessoas.
– Encontrei um segurança chorando porque a mulher dele ainda estava lá dentro – conta.
O empresário tentou chegar até ela, mas achou o caminho bloqueado por uma pilha de corpos. Retornou puxando uma pessoa e, quando tentava entrar novamente, acabou impedido por um bombeiro, por razões de segurança. Olhou em volta e empunhou uma marreta da corporação. Com ela, começou a quebrar a fachada do estabelecimento para criar um novo acesso. Em segundos, outros jovens agarraram picaretas, machados e barras de ferro com o mesmo objetivo e compuseram uma das imagens mais emblemáticas da madrugada trágica. Um rombo se abriu na parede, mas, em vez de sobreviventes, por ali só saíram rolos de fumaça preta.
– Não deu para tirar ninguém – lamenta Riet, que ficaria cinco dias internado devido à aspiração dos gases.
Centro Desportivo Municipal vira epicentro da dor gaúcha
Quando o coordenador da Defesa Civil chegou ao local, antes das 4h30min, a marreta de Riet já tinha sido abandonada. Não havia mais esperança de resgatar sobreviventes, e os bombeiros faziam o rescaldo do incêndio no interior ainda esfumaçado da boate.
Adilomar em seguida entrou na Kiss e, pelo que pôde vislumbrar em meio à escuridão, achou que havia no mínimo mais 30 mortos no local, além dos 20 já retirados:
– Foi o momento mais chocante de todo o dia – avalia o tenente-coronel.
O novo desafio era organizar o cenário caótico e fazer o “manejo dos mortos”, no jargão de Defesa Civil. Adilomar e representantes da Brigada, prefeitura e Polícia Civil fizeram, diante dos escombros fumegantes da Kiss, a primeira reunião do que viria a se transformar no gabinete de gestão de crise em Santa Maria.
Uma das primeiras e mais importantes decisões a serem tomadas era definir o local para onde seriam removidos os corpos, a fim de serem identificados e entregues às famílias. Amplo, com boa infraestrutura e fácil acesso, o Centro Desportivo Municipal (CDM) se transformaria no epicentro da dor no Estado.
Para dar conta da catástrofe, o tenente-coronel de 43 anos, há 26 na Brigada, avaliou que seria necessário envolver mais órgãos oficiais. Telefonou para o chefe da Casa Militar, coronel Oscar Luiz Moiano, para pedir a liberação de aeronaves para transporte de vítimas, peritos para identificação dos mortos, apoio das Forças Armadas e reforço no efetivo da Defesa Civil.
Ainda pela manhã, servidores de órgãos e instituições como Brigada Militar, Instituto-geral de Perícias (IGP), prefeitura, secretarias estaduais, Exército, Aeronáutica, Corpo de Bombeiros, Cruz Vermelha, Serviço de Atendimento Móvel de Urgência e polícias Civil e Rodoviária Federal se uniram a cerca de 500 voluntários. O efetivo passou a ser coordenado pelo gabinete de gestão, no CDM, onde Adilomar se instalou.
Às 7h30min, um caminhão-baú da BM começou a buscar as vítimas e a deixá-las em um dos galpões do complexo. Ainda pela manhã, 234 corpos começaram a ser identificados. Quem não estava com a carteira de identidade tinha as impressões digitais colhidas e enviadas via internet para o IGP, na Capital, onde eram comparadas com um banco de dados.
– Nosso principal medo era que esse trabalho durasse mais de 24 horas. Por isso, já havíamos deixado frigoríficos da região de sobreaviso – revela o oficial.
Maratona fúnebre exigiu organização e agilidade
Com a chegada massiva de parentes em busca de informações, o tenente-coronel procurou orientar os brigadianos que faziam o policiamento da área: tinham de ser firmes para manter a ordem, mas respeitosos.
– Vi colegas disfarçando as lágrimas. Ninguém ficou totalmente alheio – conta.
À tarde, o CDM fervilhava com policiais, peritos, familiares e amigos de vítimas, jornalistas. Por trás da aparente confusão, havia um sistema: os corpos alinhados no primeiro galpão, uma vez identificados, passavam para um anexo. Lá, recebiam o registro do óbito. Então eram leva dos a uma terceira ala, onde eram entregues às funerárias e, de lá, liberados para os velórios, que começaram depois das 16h.
Em meio à maratona fúnebre, Adilomar e os demais integrantes do gabinete de crise faziam reuniões de hora em hora. No fim da tarde, o tenente-coronel deu-se conta de outro desafio: em um dia normal, Santa Maria realiza meia dúzia de enterros. Como dar conta de mais de uma centena que deveriam ocorrer o dia seguinte? Uma força-tarefa formada por Brigada Militar e Exército rumou, então, para os principais cemitérios da cidade, para abrir covas e gavetas para o dia seguinte.
O grande receio do oficial fora evitado: antes da meia-noite, os últimos corpos estavam identificados. A última vítima, acolhida em um caminhão-frigorífico do Exército, seria entregue aos familiares apenas na tarde de segunda-feira, porque seus parentes vinham de Mato Grosso do Sul.
Quando se completaram as 24 horas cruciais após o incêndio, a parte mais sensível do trabalho estava concluída, e Adilomar poderia ir para casa terminar a noite de sono interrompida na véspera. Em vez disso, tomou um café e continuou no CDM. Não estava com espírito para ir para casa, muito menos dormir.
O empresário Luís Gustavo Riet, que empunhou a marreta diante da Kiss, até hoje não consegue ter uma noite de sono:
– Tomo remédios, mas não durmo direito.
O gabinete de crise ainda funciona no CDM, e Adilomar segue trabalhando no auxílio a familiares de vítimas. Para personagens como o tenente-coronel, a noite de 27 de janeiro, o domingo cruel, ainda não acabou.
MARCELO GONZATTO